A APORNOCRACIA PAPAL
Após a morte de Carlos, o Calvo, em 877, a Europa ocidental entra por mais de um século numa fase de caos indescritível, provavelmente o período mais confuso da história medieval. O território do que havia sido o Império Carolíngio fragmenta-se em pequenas unidades efêmeras, de limites móveis, numa mescla geral que desafia qualquer tentativa de narrativa clara. Nesse naufrágio, desaparece o título imperial, atribuído pela última vez a um filho de Luís, o Germanico: Carlos, o Gordo (881-887). O próprio papado está prestes a entrar na tormenta durante esse período que foi chamado de "pornocracia pontifical", quando os soberanos pontífices, que se gabam de fazer imperadores, são eles mesmos joguetes de facções aristocráticas romanas, bem como de cortesãs. Começa com o assassinato de João VIII, em 882, por veneno e golpes de martelo. A partir daí, são as grandes famílias que fazem e desfazem os papas, os Teofilacto e os Crescient entre outros. Ressaltemos simplesmente os episódios mais pitorescos, e que não são os menos significativos: os quinze dias de pontificado de Bonifácio VI, um padre depravado, em 896; a exumação do cadáver do papa Formoso, por ordem do papa Estêvão VI, em 897 (o defunto, em plena decomposição, vestido com suas vestes pontifícias, é julgado durante o sínodo denominado "sínodo do cadáver"; os dois dedos de sua mão direita que serviam para abençoar são cortados, ele é mutilado e seus pedaços são jogados no Tibre); o assassinato de Estêvão VI, estrangulado na prisão em agosto de 897; o mesmo destino para Leão V em 903, por ordem de seu sucessor Cristóforo, ele próprio vítima de seu sucessor Sérgio III em 904. Começa então o período mais surpreendente, animado pelo trio infernal que forma o magister militum: Teofilacto, sua esposa Teodora e, principalmente, sua filha Marósia (Marouzia). Carreira extraordinária a dessa mulher, amante do papa Sérgio III aos 15 anos, com quem tem um filho, que ela faz tornar-se o papa João XI (931-935) após mandar assassinar os papas João X (914-928), Leão VI (928) e Estêvão VII (928-931); seu neto, por sua vez, foi eleito papa em 955, aos 17 anos, e pode ser considerado o pior papa da história, João XII, cuja devassidão não encontrava limites: depois de mandar cegar, cortar o nariz e as orelhas de seu concorrente Leão VIII, em 964, foi espancado até a morte por um marido que o encontrou na cama com sua esposa. Obviamente, o Espírito Santo havia desertado do trono de São Pedro.
Esses episódios, sobre os quais a história oficial lança um véu de pudor, e que fazem as torpezas dos Bórgia parecerem agradáveis contos infantis, deram origem durante a Idade Média à lenda da papisa Joana, que aparece nas crônicas dominicanas do século XIII: uma mulher que havia conseguido se fazer passar por homem, a fim de ser eleita papa, e cuja impostura fora descoberta quando ela pariu no meio de uma procissão. Dessa época em diante, escreve Yves-Marie Hilaire, “para evitar tal desventura, verifica-se manualmente o sexo dos papas durante a coroação nas cadeiras furadas" para se ter certeza de que "ele possui aquilo", de alguma forma. Pura lenda, mas muito significativa. No Ocidente, verifica-se o sexo do papa; no Oriente, discute-se o sexo dos anjos.
Essas anedotas não são supérfluas. É bom lembrar que são esses mesmos papas que afirmam terem recebido de Deus o poder de consagrar imperadores e sancionar a conduta deles. Assim, quando lemos que, em 2 de fevereiro de 962, Otão I foi consagrado imperador em Roma pelo papa João XII, não é inútil saber que esse João XII é um jovem de 24 anos, perverso e devasso, totalmente inculto, que bebe exageradamente e consegue consagrar um menino de 10 anos como bispo. Isso dá a medida da decadência global da vida política e religiosa no século X.
MINOIS, Georges. História da Idade Média: mil anos de esplendores e misérias. São Paulo: Ed. Unesp, 2023. p. 155-156.

